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sexta-feira, outubro 31, 2003

As nuvens estão enjoadas. Gravidez de risco. Acizentada.
Saio e não passo pelas ruas: não se vêem entre os terços desfiados, copiosos. Até que...
Passando a porta do colégio aparece um menino, outro e outro, uma menina, outro menina, outra. Aparece uma rua cheia de meninos, uma rua-de-meninos (a palavra abotoa-me longe do frio). Na rua-de-meninos um com guarda-chuva, outro com guarda-chuva, e outro. Por causa dos terços. Um corredor de guarda-chuvas à altura da cintura dos grandes. Os grandes, esses, atrapalham-se a passar. A rua-de-meninos estica os braços, estica-se, empurra-se. Eu não tenho guarda-chuva. Mergulho no corredor, suspensa a respiração. E no tempo em que passo encolhida, a fingir que não cresci, o céu abre-se em flores e bolas e rosas transparente e azuis dentro de bonecos e sóis. Estão pintados nos guarda-chuvas. Sóis e riscas, sóis às riscas e rosas transparente e bolas com flores e azuis. Na rua-de-meninos, a chuva é uma chamada não atendida.

terça-feira, outubro 28, 2003

Um dia que tenha um filho quero um rapaz, azul. Acho que sempre quis. Mas nunca tinha ponderado o sexo do blog. Daí o fenómeno das cores. Peço desculpa pela estridência, alienação de identidade: cromossomas em formação...

segunda-feira, outubro 27, 2003

"There's a gap in between
There's a gap where we meet
Where I end & you begin
And I'm sorry for us
The dinosaurs roam the earth
The sky turns green
Where I end & you begin
I am up in the clouds
I am up in the clouds
& I can't and I can't come down
I can watch but
Not take part
Where I end & where you start
Where you, you left me alone
You left me alone
X will mark the place
Like the parting of the waves
Like a house falling in the sea
In the sea

I will eat you all alive
And there'll be no more lies"

(the sky is falling in/ where I end and you begin, RADIOHEAD)

E foi decretado o fim do verão...

Estavam o frio e uma lareira acesa na sala. O frio calado a um canto sobre o chão de azulejo.
Estavam os risos dos mais pequenos no pátio, porque saltavam uma fogueira "a sério", com as castanhas e as cores vermelhas.
Estava um céu carregado. Negro e azul eventual.
Estava a noite. E uma hora à espera de registo.
O "sr doutor", padre e dono da casa, entrou a pedir fósforos. "Eu sabia que os tinha por aqui..". E um rosto a rebolar sobre o corpo a seguir tudo com atenção.
Estava a chuva a cair como teia lá fora.
Depois passaram uns minutos. Uns minutos e uns olhos a rebolar no tecto.
Depois havia água negra pelo chão de azulejo. O silêncio tinha saído a correr com os pequenos para o pátio, para longe do pátio. Havia gritos. E uma teia vermelha no tecto, a rebolar os olhos. Depois os gritos a correr. E a água em baldes sobre a lareira acesa. E a água em chuva sobre o tecto. Correram as pernas e os baldes e as vozes.
" Olha os livros!"
"O que faço com livros?"
Os miúdos a correr longe, (contrariados porque queriam o vermelho).
Correram escadas e pernas e baldes e louça. E livros a ser abraçados e arrastados para fora.
A teia vermelha alta. Fumo. Mais fumo. Água negra pelo chão. A rebolar-se na fogueira.
Água sem pés a alastrar na sala e tecto. Chuva sem luz lá fora. Com o silêncio dali corrido.
O "sr doutor" a olhar os livros com os cantos húmidos, a olhar os azulejos de água. A olhar...
"Os fósforos já não servem para nada... molharam-se"
Os miúdos continuaram a correr com a água lá fora. Ouviam-se os risos.

Às vezes tenho tanto sono e choro dentro que não acredito que haja noite que me cubra.

sábado, outubro 25, 2003

Foi quando vi, ainda pequena, que dava para mexer nos ponteiros do relógio e "atrasar" uma hora que percebi que o tempo não era inviolável. Afinal não passava de um jogo, o grande mecanismo "faz de conta" para as brincadeiras pontuais dos adultos. Ainda assim sinto a hora que não passa como irreversível.

Entre o sono e a verdade...
As folhas estão mais leves nas árvores ou são como crustáceos para as calcarmos no chão. O céu negro tende a arterial, corre-se de sangue branco, desce em litígios. TV ligada, fantasmas em sequências. TV desligada.
Eu no quarto averso. E o céu a enchê-lo de fantasmas arteriais. Sangue branco.
A possibilidade de me esperarem pesadelos cresce em dois nomes. Em dois meses, ou duas estações. Não aguento o frio. As ruas por onde passo já me trazem no pensamento. E sabem que não olho para atravessar. Que há sempre alguém que me agarra o braço no tempo certo. Não aguento o frio de hoje.
Estou no quarto e tenho um texto teu. Minto: nosso. E é só nele que quero estar.
"As conversas com consequências são inconsequentes?".
No texto "faz calor em todo o lado". Decorei-lhe os passos e parágrafos. Não aguento o frio de hoje.
As folhas hoje estavam mais leves nas árvores. Ou eram crustáceos para as calcar no chão. Por causa do frio.

sábado, outubro 18, 2003

Abrir os olhos e a noite ainda a derreter na luz longe. Frio. Olhos a arder por ter de os abrir dos sonhos onde havia, lembro vagamente, um chão de casa inundado por água do banho, água a correr pelas escadas e rua de pedra; onde havia gritos de reprimenda e um raro caminho até uma gruta de gelado de nata e chocolate. Rio de olhos ainda a alternar na luz/negro/luz/cinza/luz... a alternar no riso/choro/riso. A filtrar imagens que não devia ter visto nesse sonho.
Depois é afastar cobertores, inspirar fundo, saltar para o chão e acreditar que vai fazer calor.
Os dias podem estar mais pequenos, mas as noites não estão maiores.

quarta-feira, outubro 15, 2003

Encontrei um coração recortado em papel caído com as folhas. Mostrei-o a uma amiga que sorriu e: "Andas a apanhar coisas do chão?" Mãe riu na minha atrapalhação de o perder na rajada de vento, hoje. "Guardas isso para quê?" Não sei... Pode ser que seja de alguém.

domingo, outubro 12, 2003

"desculpa (...)
a solidão turva-se-me de lágrimas
e nas pálpebras tremem visões do meu delírio
olho as fotografias de antigos desertos
corpos coerentes que fomos
bocas de papel amarelecido
onde a sede nunca encontrou a sua água
e às vezes ainda tenho sede de ti
mas na vertigem da viagem o coração galopa desordenadamente
no écran da memória acende-se a imagem (...) que amei
(...)
pergunto-me se a memória não será um espaço arquitectado
para abrigar os mais terríveis remorsos e o futuro
(...)
tudo se perdeu
e na confusão do pouco tempo que me resta duvido
que nos tenhamos amado alguma vez
(...)
víamo-mos cada vez menos até que nos perdemos definitivamente
foi quando me assolaram as primeira visões
as nossas noites eram sempre mais longínquas uma da outra
(...)
eu já andava atravessando as noites
onde uma navalha oculta talhava um sexo branco no vento
abria nas pedras fulvas da praia um lugar para esconder
o corpo exausto
a febre esmagava-me
(...)
tinha medo
medo que certos hálitos fortes me fizessem estremecer
apesar de tudo avançava (...) sempre para me afastar
de ti e de mim o mais que pudesse
experimentei breves paixões tristes carícias
cantei com as lágrimas molhando as palavras sussurradas
no escuro do quarto cantava
a cidade de olhos entumecidos a fome entorpecia os gestos
atirando o corpo para o mais terrível abandono(...)"
(AL BERTO)

Não há acasos, Jo. Há magnetismos. Encontrei hoje o Al Berto. Talvez porque ele me vinha já buscando há algum tempo... Li este texto (adaptado e encenado) em Março de 2002. Esqueci. Hoje o dia gira e, estalo, encontro-o de novo. Já não me lembrava de quanto o sentira na altura... Ele ainda sim.

sexta-feira, outubro 10, 2003

Ofereceram-me um livro
Não fui capaz de resistir, dizer muitos "não, obrigada". As palavras coladas às folhas coladas aos dedos e a mana a dizer "É esse que queres e eu quero dar-to!" Trouxe-o comigo até junto ao ecran. "A criança em ruínas" de José Luís Peixoto. Trazia também na ideia citar um poema. Depois afastei-me: demasiado pessoal...

terça-feira, outubro 07, 2003

Os deuses vivem desde sempre em capelas, porque nas catedrais desde sempre viveram as imagens. Humanas. (Nunca soube dizer quem prefiro visitar)
Na capela celebrava-se a morte de alguém. " A passagem para uma vida superior", dizem, "junto a Deus", dizem, "melhor, acredita, ele está melhor". As pessoas são negras e estão a rebentar nas roupas e entre si. Não consigo passar da porta da capela. Espreito com o corpo fora, e ouço. O padre fala sem parar nas comoções. A D. Teresa chora como se conhecesse o morto, como faz sempre. Desta vez conhece-o.
Os olhares não se deslocam do altar. Está lá o padre e os deuses todos na sua boca. Os vitrais gorgolejam sol.
Há um miúdo que estende o olhar até à porta, de que eu não passo. Diverge a minha atenção. Depois levanta-se e sai. Passa por mim.
A missa permanece, de olhares concentrados. Vazio e choro. Apatia.
Há uma menina inquieta a falar sem parar. A falar baixo. Quer sair. Passa por mim, com a mãe pela mão.
A missa permanece dentro, de palavras redundantes e em coro.
Há um bébé a passar por mim no colo de alguém. Adormecido.
E a missa permanece escaldada nas velas, de perguntas e resposta remoinho.
Há um miúdo além que passa a correr. Contornou as inúmeras mãos sobre a púbis negra e saiu.
O meu corpo fora amplia agora os risos dos miúdos que se juntaram fora. Ao sol. Penso que sempre houve uma qualquer relação copiosa entre infância e morte. A grande consciência que foge das palavras permanentes.
Há um miúdo que não consegue passar os rostos voltados para o altar e me olha sentado num degrau de pedra. Com tanta vontade de sair.

ler instruções
Conheces alguém e na forma como conheces há algo dissonante. Sentes que esse alguém não encaixa, porque é tão diferente. Depois aceitas continuar a conhecer… porque existem preconceitos (limpar palavra, por favor) e porque existem conceitos por descobrir. Depois apaixonas-te pelo alguém e pela forma como desencaixa contigo. Depois apaixonas-te. Depois… Depois há precipícios que aprendemos a contornar tantas vezes que parecem quase não existir, embora os sintas lá, incómodos, como roupas que não consegues despir, que se colaram ao corpo. Disse: e depois não tiveste cuidado e apaixonaste-te pelo alguém, com os precipícios pelo meio.
Voos negros e vontade de cair, com o medo.
Depois algo acontece. Algo que ocorre fora do caminho.
(As dissonâncias todas contra o meu rosto e eu nua, sem saber mentir.) As dissonâncias todas e as justificações por encaixar. Estavam lá e tu sabias. Estavam lá contadas desde a nascença, na palma da mão. Só tu sabias.
Veios negros e vontade de os cortar, sem o medo.
Depois tudo a acaba e a culpa é de alguém.
Alguém.
Sou sempre eu.

quinta-feira, outubro 02, 2003

Acordei e o dia é dióxido de carbono. Respirado. Chuva, frio em pontas dos pés, amplexos de cinza.
E uma qualquer tristeza a naufragar dentro... por mais que a tente afogar.

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