segunda-feira, novembro 27, 2006
"Uma certa quantidade de gente à procura
de gente à procura duma certa quantidade
Soma:
uma paisagem extremamente à procura
o problema da luz (adrede ligado ao problema da vergonha)
e o problema do quarto-atelier-avião
Entretanto
e justamente quando
já não eram precisos
apareceram os poetas à procura
e a querer multiplicar tudo por dez
má raça que eles têm
ou muito inteligentes ou muito estúpidos
pois uma e outra coisa eles são
Jesus Aristóteles Platão
abrem o mapa:
dói aqui
dói acolá
E resulta que também estes andavam à procura
duma certa quantidade de gente
que saía à procura mas por outras bandas
bandas que por seu turno também procuravam imenso
um jeito certo de andar à procura deles
visto todos buscarem quem andasse
incautamente por ali a procurar
Que susto se de repente alguém a sério encontrasse
que certo se esse alguém fosse um adolescente
como se é uma nuvem um atelier um astro"
(Mário Cesariny)
Encontrei-te.
sexta-feira, novembro 10, 2006
Ser Clementina... um bocadinho" «Como me sinto inquieta», pensou Clementina, debruçada à janela.
O jardim doirava-se ao sol.
«Não sei onde eles estão, o Noël, o Joël ou o Citroën. Podem , entretanto, ter caído ao poço, ou comido alguns frutos envenenados, ou apanhado com alguma seta num olho, se algum outro miúdo anda a brincar no meio da estrada com um arco, ou podem ter sido contaminados pela tuberculose, se algum bacilo de Koch se meteu de permeio, ou terem perdido os sentidos, se cheiraram alguma flor de perfume muito intenso, ou terem sido picados por um escorpião trazido pelo avô de algum garoto da aldeia, algum célebre explorador que tenha chegado há pouco tempo da terra dos escorpiões, ou terem caído de uma árvore abaixo, ou corrido, depressa demais, e partido uma perna, ou brincado com a água e afogado, ou descido a falésia e estampado e quebrado a espinha, ou arranhado nalgum arame ferrugento e apanhado o tétano; foram até ao fundo do jardim e viraram uma pedra, debaixo da qual havia uma pequena larva amarela que vai desenvolver-se num abrir e fechar de olhos, e voar em direcção à aldeia, e introduzir-se no estábulo de um touro bravo e picá-lo no focinho; o touro sai do estábulo, deita tudo abaixo, e ei-lo que mete pernas ao caminho, em direcção a esta casa, vem de lá com doido, deixa tufos de pêlo negro em cada curva, presos às moitas de uva-espim; e, mesmo em frente de casa, lança-se de cabeça baixa contra uma pesada carroça puxada por um cavalicoque meio cego. Com o choque, a carroça desmantela-se e um pedaço de metal é projectado no ar a uma altura incrível; possivelmente um parafuso, uma porca, um prego, um ferro do varal, um gancho de ligação, um rebite das rodas, que foram carpinteiradas e depois quebradas, e reparadas mediante cinchos de freixo talhados à mão, e esse pedaço de ferro sobe, silvando, em direcção ao azul do céu. Passa por cima do gradeamento do jardim, e oh meu Deus, vai cair, vai cair e, na queda, aflora a asa de uma formiga voadora, arrancando-lha, e a formiga, mal dirigida, perdida a estabilidade, vagueia por sobre as árvores como uma formiga que já não presta, e tomba, de repente, sobre a relva onde Deus meu, está o Joël, o Noël e o Citroën, a formiga cai em cima da bochecha do Citroën e, deparando, possivelmente, cons uns restos de doce, pica-o...
- Citroën, Onde estás tu?»."
(BORIS VIAN)
segunda-feira, novembro 06, 2006
A previsão de fim-de-semana era de possíveis quedas de arco-íris.
Arco-íris, como fios de telefone, estendidos e enrolados pelos andares do prédio. 4am.
Ring, ring.
Caiu um. Estilhaçado e a perder as cores.
Sim?
- O meu marido está a ter pesadelos. Soldados encarnados andam pela casa.
Sim?
- Ele disse que são encarnados. Mas ele também não diz coisa com coisa. Não há nenhum na sua casa?
Não.
Chamada que cai.
Ring ring.
Ring Rung.
Rung Rung.
As escadas caem por sim mesmas abaixo. Do preto para o preto muito escuro, salpicado por cor-de-rosa interruptor.
Ring.
Pisca, pisca.
Escuro, muito escuro.
A porta que abre.
Foi um arco-íris, minha senhora. Sabe como é? É fechar os olhos e vê que passa.
- Mas ele não diz coisa com coisa, não diz cor com cor.
E os soldados?
- Diz que trocaram de farda.
Vá dormir, minha senhora. Baixe as luzes.
- Mas agora caiu a chamada. A linha, não é possível chegar a lado nenhum.
O comboio, sim. Eu vi as notícias.
E os olhos fora da touca puxam como a mão fora da camisa de dormir:
- Fique comigo.
Sim?
Escuro, muito escuro.
- Tenho medo das cores que não combinam.
Sim?
- Só até ser escuro, pouco escuro.
Pisca pisca.
Cor-de-rosa interruptor.
Cor-de-rosa interior.
lido
aqui um dia destes...